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O papel das distribuidoras na transição energética

Nivalde de Castro, professor do Instituto de Economia da UFRJ e coordenador geral do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel)
*Publicado no Valor Econômico em 23 de abril de 2024

Demora do Executivo em definir configuração do novo modelo de contratos de concessão abre espaço para que esta questão, essencialmente técnica, seja capturada por interesses políticos.

A dinâmica de expansão do setor elétrico mundial e do Brasil ganhou uma nova dimensão estratégica com cenários e desafios associados diretamente ao processo de transição energética. O objetivo máximo deste processo é, “simplesmente”, a descarbonização de todos os processos de produção de bens e serviços para enfrentar o risco global das mudanças climáticas. Neste sentido, uma das principais linhas de ação para a descarbonização é atingir o máximo potencial da eletrificação verde das cadeias produtivas, ou seja, passar a utilizar, onde for possível, energia elétrica gerada por fontes renováveis, energia verde, em substituição ao consumo dos recursos fósseis – carvão, petróleo e gás natural.

A outra vertente do processo de descarbonização pode ser sintetizada da seguinte forma: onde não for possível a eletrificação verde, a opção tecnológica mais viável é a substituição dos recursos fósseis por hidrogênio verde (H2V) e seus derivados, que são produzidos por meio de energias renováveis, como eólica e solar, além, obviamente de outras fontes tradicionais, como energia proveniente de usinas hidrelétricas e térmicas à biomassa.

Uma questão central é que, em ambas as estratégias (eletrificação e H2V), o segmento de distribuição de energia elétrica assumirá uma posição crucial, devido a três vetores fundamentais, sintetizados em seguida.

O primeiro vetor está associado ao fato de que grande parte da nova produção de energia elétrica para atender a eletrificação e a indústria de H2V irá escoar pelas redes de distribuição, exigindo novos e maiores investimentos para ampliar as redes elétricas.

O segundo vetor é que a maioria das inovações tecnológicas vinculadas direta e indiretamente à transição energética irá se desenvolver, principalmente, nas cidades, impondo a necessidade de novos investimentos nas redes de distribuição urbanas. Dentre as inovações tecnológicas em expansão nos espaços urbanos, as principais serão os veículos elétricos, a micro e minigeração distribuída solar fotovoltaica, a digitalização das redes elétricas e a troca para medidores inteligentes.

Por sua vez, o terceiro vetor é fruto direto do aquecimento global. Nota-se a ocorrência cada vez mais frequente e com maior intensidade dos eventos climáticos extremos, como ondas de calor, ventanias, chuvas, enchentes, etc., todos batendo recordes continuamente. Para tornar as redes de distribuição mais resilientes a estes eventos extremos, também serão necessários maiores investimentos, a serem suportados por uma nova regulamentação específica para este tipo de fenômeno, até então pouco frequente.

Frente aos impactos destes três vetores, é necessário destacar algumas características econômicas do segmento de distribuição de energia elétrica. Este segmento é classificado como uma indústria de rede, o que justifica a configuração de uma estrutura de monopólio natural por ser mais eficiente do ponto de vista econômico. Somente uma empresa deve ser responsável por esta atividade produtiva, atuando em espaços geográficos bem demarcados e sob a égide de contratos de concessão assinados com o poder concedente.

Estes contratos definem os deveres e direitos das concessionárias de distribuição e são auditados continuamente por uma agência reguladora, no caso a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Este instrumento legal adota o princípio teórico-metodológico da “regulação por incentivos”, que resumidamente significa que, se a distribuidora superar metas de qualidade e desempenho estabelecidos, em média, a cada quatro anos pela Aneel, os ganhos são divididos entre a concessionária e os consumidores. Por outro lado, se a distribuidora ficar abaixo da meta, a concessionária é penalizada com uma redução das tarifas e, no extremo, pode receber multas elevadas.

Outras características econômicas do segmento de distribuição de energia elétrica que merecem ser destacadas é de ser uma atividade de capital intensivo, de longo prazo de maturação e que exige investimentos contínuos para garantir a qualidade do fornecimento e o equilíbrio entre a oferta de energia e demanda dos diferentes consumidores, suprida e viabilizada pelas redes elétricas.

A exigência de investimentos contínuos ganha uma maior dimensão neste momento de transição energética para uma economia verde, como expostos através dos três vetores, o que indica, claramente, que o seu volume terá que se elevar a uma nova magnitude, bem acima das médias históricas. Para se ter uma dimensão numérica da magnitude dos investimentos no segmento de distribuição, a partir de dados disponíveis da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee), a média anual de recursos investidos nos últimos dez anos foi de R$ 18 bilhões, enquanto, em 2023, foram investidos cerca de R$ 31 bilhões. Para o triênio 2024-2026, estão previstos investimentos em mais de R$ 100 bilhões. Ou seja, os impactos da transição energética sobre os investimentos já se fazem presentes.

Frente a este desafio ímpar que as concessionárias de distribuição de energia elétrica irão se deparar em razão direta da transição energética, a qualidade jurídica dos contratos de concessão ganha uma importância ainda mais estratégica. Graças à qualidade deste instrumento legal, os investimentos no segmento de distribuição são realizados pelos agentes econômicos com segurança, investimentos estes, destaca-se novamente, vultosos, crescentes, de longo prazo de maturação e em fluxo contínuo.

Historicamente, a construção do consistente marco regulatório do Setor Elétrico Brasileiro (SEB), que segue, em linhas gerais o benchmark internacional, garantiu a metamorfose de um setor totalmente estatal, que prevaleceu até os anos de 1980, para um setor em que as decisões de investimento passaram gradativamente para agentes econômicos privados nacionais e internacionais. Neste modelo de desenho de mercado, cabe ao poder público, através da ANEEL, regular, avaliar, validar e fiscalizar a atuação dos agentes econômicos de quatro segmentos: geração, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica.

Com base neste modelo, que preza pela segurança jurídica dos contratos, o SEB conseguiu, entre outros feitos:

  1. Superar a crise do apagão, através da ampliação significativa da capacidade instalada de geração de energia elétrica;
  2. Realizar leilões para garantir investimentos na expansão da rede de transmissão, integrada e adequada a um país de dimensão continental; e
  3. Praticamente universalizar o acesso à energia elétrica através das distribuidoras, que atendem mais de 87 milhões de unidades consumidoras, o que equivale a 99,8% dos lares brasileiros.

Face a esta metamorfose em curso acelerado, o segmento de distribuição ainda está aguardando uma definição formal, por parte do Ministério de Minas e Energia (MME), em relação à configuração do novo modelo de contratos de concessão. A questão foi levada à consulta pública pelo MME, com suporte de uma nota técnica muito qualificada e bem fundamentada, e recebeu inúmeras contribuições da sociedade, além do prudente aval do Tribunal de Contas da União. Portanto, espera-se a promulgação de um decreto pelo Poder Executivo, cujas linhas mestras e parâmetros centrais estão bem definidos na nota técnica do MME, de modo a proporcionar segurança e estímulo à investimentos para as redes de distribuição frente aos desafios da emergência climática global.

A demora na publicação do decreto pelo Poder Executivo, que, como demonstrado neste artigo, tem uma dimensão fundamental para o desenvolvimento do SEB e da economia brasileira, abre espaço para que esta questão, essencialmente técnica, regulatória e econômica, seja capturada por interesses políticos, como o que se tem constatado nas ementas aos Projetos de Lei e Medidas Provisórias impregnadas de “ovos de jabutis”, nome que se dá às ações com interesses econômicos muito particulares e sem nenhuma fundamentação técnica que estão contribuindo para uma perda de qualidade e comprometimento do marco regulatório do SEB. O tempo não é neutro.