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O futuro do pretérito e a sobrecontratação das distribuidoras de energia elétrica

Fonte.: Portal Jota

Paulo Gabardo

É importante preservar as boas empresas no setor e atentar para as necessárias desestatizações que se avizinham

Com o novo modelo de comercialização regulada inaugurado pela Medida Provisória 144 de 2003, convertida no ano seguinte na Lei 10.848, por sua vez regulamentada pelo Decreto 5.163, sacramentou-se um dos pilares do estímulo à expansão do parque gerador, qual seja, a obrigação de as distribuidoras – bem como os consumidores livres – apresentarem contratos de compra de energia em montante equivalente à carga dos últimos doze meses. A não apresentação desses contratos ensejaria penalidade por insuficiência de lastro e limitação de repasse dos custos de aquisição da diferença no mercado de curto prazo.

Considerando as incertezas de se acertar na mosca a igualdade entre carga e contrato, foi estabelecida uma margem de tolerância de 3% de sobrecontratação, dentro da qual haveria repasse tarifário integral. Acima disso, os erros de projeção ficariam com os acionistas das distribuidoras.

Havia ainda um grande volume de contratos flexíveis (energia existente), que permitiam trocas entre distribuidoras com sobras e déficits e reduções de montante contratado por diversas hipóteses, o que complementava o conjunto de instrumentos disponíveis para manter a contratação dentro da tolerância. A sobrecontratação estava longe de ser um problema incontornável, sendo facilmente absorvida por déficits de outras empresas.

As bases começam a se alterar com os leilões estruturantes, cuja contratação independia demanda. Ou seja, o leilão contratava a força a fim de viabilizar os projetos. Mas a virada de mesa veio em 2012, com a MP 579, que matou a maior parte da flexibilidade da energia existente por meio do regime de cotas. Ciente de que a rigidez tinha aumentado, o governo ampliou a faixa de tolerância de sobrecontratação para 5% e criou hipóteses mais explícitas de sobrecontratação involuntária.

Não obstante o abalo desses fundamentos na gestão das sobras contratuais, antes de uma sobrecontratação generalizada o setor enfrentou a maior subcontratação de sua história, motivada em grande parte pela decisão de não realizar o leilão de energia existente de 2012.

Essa decisão do governo deixou as distribuidoras sem contratos, comprando energia no mercado de curto prazo. Mas miséria pouca é bobagem. A irresponsabilidade de não realizar o leilão foi acompanhada de uma das maiores crises hídricas da história, o que fez o preço de curto prazo disparar e criou um problema gravíssimo de liquidez nas distribuidoras.

Daí veio Conta-ACR, bandeira-tarifária e revisão tarifária geral em 2015. Também daí criaram-se condições para dois movimentos de fuga das tarifas: (i) a micro e mini geração distribuída com compensação de créditos; e (ii) a migração maciça de consumidores para o mercado livre especial, adquirindo energia com a vantagem do desconto no fio.

Quando a subcontratação foi regularizada, a rigidez da oferta e a resposta da demanda pelos mecanismos de fuga ocasionaram a inversão de posição das distribuidoras. De uma falta de contratos sem precedentes, passamos a uma sobrecontratação generalizada.

Nesse cenário, várias medidas adicionais foram buscadas pelo Ministério e pela ANEEL para aumentar a flexibilidade da gestão contratual. Além disso, a migração de consumidores especiais foi classificada como hipótese de sobrecontratação involuntária. À ANEEL coube o papel de fazer o levantamento dos volumes voluntários e involuntários e verificar o máximo esforço, isto é, avaliar se a distribuidora fez tudo o que podia para se livrar do excesso de contratos – mesmo conceito que a ANEEL já aplicava desde o início do modelo nos casos de subcontratação involuntária.

Após longo período de análise, a ANEEL publicou os montantes de sobrecontratação involuntária dos anos de 2016 e 2017. Apresentando uma interpretação inédita, a Agência passou a olhar os resultados obtidos em cada ano, relativizando exigência de máximo esforço. Ressalta-se que essa intepretação é inovadora e assimétrica em relação aos precedentes aplicados nos anos de subcontratação. O mais preocupante, todavia, é que a decisão alcança ações tomadas pelas distribuidoras há mais de quatro anos, época em que a interpretação não existia.

Há esperança de que o tema seja revisitado nas fases recursais, mas o sinal é de alerta. Ainda restam as avaliações dos anos de 2018 e 2019, além da indefinição da sobrecontratação involuntária por efeito da pandemia.

Por decisão da ANEEL de não colocar em discussão na segunda fase da CP 35, as distribuidoras seguem sem saber qual será a redução de carga considerada pela Agência como efeito do coronavírus no ano de 2020. Também não sabem como será medido o máximo esforço neste ano, o que adquire dimensão ainda mais preocupante com a relativização desse conceito, que sempre foi estável.

É preciso tratar esses temas com a devida urgência, ajustando-se os efeitos econômicos devidos e respeitando-se a solidez das regras. Não é razoável se esperar que as empresas antevejam alterações futuras de interpretação ou que respondam a regras ainda desconhecidas. A regulação deve sempre vir antes da ação das empresas, pois é o que molda essa ação.

Entre tantos fatores pressionando o segmento de distribuição, a sobrecontratação é mais um com grande potencial de produzir estragos. No fim do dia, isso implica aumento de risco e redução da atratividade econômica. Não custa lembrar que a energia elétrica só chega com qualidade nas residências, hospitais, indústrias e comércios se houver investimentos em distribuição.

Não custa lembrar também que o custo da distribuição, pequena fração da tarifa final, é minimizado apenas se houver operadores eficientes. É aí que estão os ganhos para os consumidores. É importante preservar as boas empresas no setor e atentar para as necessárias desestatizações que se avizinham. Essas lições não podem ser esquecidas pela ANEEL, a quem cabe zelar pelo equilíbrio de longo prazo.

Link da matéria: https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/tributos-e-empresas/regulacao/o-futuro-do-preterito-e-a-sobrecontratacao-das-distribuidoras-de-energia-eletrica-08092020