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Energia elétrica: era uma vez um setor seguro…

Intervenções sem a devida avaliação técnica suportada pelos organismos oficiais do setor se traduzem em desequilíbrios que estão conduzindo ao caos

Artigo publicado por Marcos Madureira no Estadão

Estou há cinco décadas atuando no setor elétrico brasileiro. Já tive oportunidades de trabalhar em empresas públicas, privadas e, agora, numa ONG, a Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee), que representa o segmento de distribuição de energia elétrica. Assim, junto com uma série de outros atores, já vivi e colaborei com alguns processos de reestruturação do setor. Um ponto em comum era o sentimento de que era um setor com desafios importantes, discussões às vezes acaloradas, mas com compromisso de dias melhores, dentro de uma visão conjunta. E aqui me lembro com saudades de Lindolfo Paixão, artífice mor do Projeto de Reestruturação do Setor Elétrico (Re-SEB), em 1996.

Os diagnósticos e desenhos das soluções futuras passavam sempre por contribuições técnicas, que suportaram as decisões tomadas, mesmo que nem todas tenham atingido o objetivo pretendido, pois é claro que vivemos em ambiente de extrema volatilidade com novas tecnologias, questões ambientais, mercados etc., que obrigam a contínuas mudanças de rumo, e isso é salutar para o rejuvenescimento do setor.

Infelizmente, em alguns momentos, esse rejuvenescimento é transfigurado em oportunidades para alguns segmentos, assim como a manutenção de antigos benefícios também, mas que nem sempre contribuem de forma sadia para o necessário equilíbrio do setor. É como diz o ditado: não existe almoço grátis, e alguém pagará a conta.

No início do ano fomos brindados com dois excelentes artigos, publicados em importantes veículos de imprensa, de autoria de dois ex-diretores da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) de reconhecida capacidade e neutralidade: o professor Edvaldo Santana e Jerson Kelman.

Edvaldo provocou uma reflexão sobre o possível cenário de gigantesco excesso de oferta de energia elétrica: “Em 2027, poderá alcançar 281 GW, tudo para suprir os 108 GW. É uma sobra cavalar, inédita em todo o mundo. Em determinados meses, a partir de 2025, esse excedente, que o ONS (Operador Nacional do Sistema) chama de ‘geração vertida de todas as fontes’ (energia jogada fora), chegará a 50 GW, ou quase 50% do consumo máximo. É uma sobra que daria para atender aos países da América Latina, excluindo Argentina e México”.

Por outro lado, Kelman alertou para a similaridade entre o que ocorreu na crise da economia mundial em 2008 com o estouro da bolha de títulos hipotecários nos EUA e a situação da geração distribuída no Brasil: “A bolha financeira nos EUA foi formada pela não intervenção do Estado em situações em que a intervenção era necessária”. Segundo ele, já no caso do setor elétrico brasileiro, a bolha cresce em razão de algumas intervenções do Poder Legislativo em temas eminentemente técnicos, de natureza regulatória.

O que existe em comum entre essas duas falas é a forma com que os subsídios, que têm sido perpetrados para alguns segmentos dentro do setor elétrico brasileiro, estão conduzindo a um cenário de caos, em que teremos de lidar com desequilíbrios absurdos, com alguns lucrando muito e outros pagando valores insuportáveis pela energia elétrica.

Temos patinado numa realidade paradoxal, na qual vivemos em busca de formas de como enxugar as tarifas, mas, ao mesmo tempo, a cada dia somos surpreendidos com novas medidas que buscam conceder ou ampliar subsídios que favorecem determinados segmentos, porém em detrimento de todos os consumidores comuns que pagam com sacrifício suas contas de luz.

A Abradee tem se posicionado, junto com outras associações e instituições de defesa de consumidores contrárias a esses subsídios, demonstrando com estudos técnicos essa crescente distorção no mercado.

Em algumas oportunidades de palestras e entrevistas, tenho buscado simplificar o que está ocorrendo com a seguinte analogia: imaginemos que o setor elétrico seja representado por um ônibus que abriga todos os agentes, sejam eles geradores, consumidores ou prossumidores. Todos que usam energia elétrica estão nesse ônibus – ou, melhor, estão conectados no Sistema Elétrico Interligado Nacional (SIN) e nas redes das distribuidoras (ou mesmo em sistemas isolados através das distribuidoras), mas por facilidade de demonstração fiquemos com o SIN, que atende praticamente todo o mercado de energia (98,3%). Assim como no ônibus, que tem custos diversos como compra do veículo, manutenção, salários de motoristas, etc., o sistema elétrico tem investimentos em subestações, linhas de transmissão, linhas de distribuição, manutenção, pessoal, etc.

Ou seja, todos os dois têm um somatório de custos que existem em razão das demandas de todos os agentes conectados e que, portanto, devem ser pagos por todos, em função da quantidade de uso. O que ocorre quando é concedido o direito de alguém deixar de pagar sua passagem no ônibus é que os demais pagarão mais. E o mesmo ocorre no setor elétrico: quando um gerador ou consumidor tem um benefício de pagar parte ou nada pelo uso do sistema, os demais pagam mais do que deveriam.

Por outro lado, imaginemos que toda a comida que é servida aos passageiros do ônibus venha da mesma panela. Ali estão feijão, arroz, carne, alface, tomate. Um cardápio equilibrado e único. Todos comem da mesma comida. Assim também é no setor elétrico. Todos consomem a mesma energia, composta de fontes hidráulica, térmica, nuclear, eólica, solar, etc. Se a comida é a mesma, o preço por quilo tem de ser o mesmo; se alguém come carne, por exemplo, e paga apenas pela alface, os demais estão pagando a conta por ele. Da mesma forma, no setor elétrico, se alguém está consumindo uma parcela de energia oriunda de uma térmica ou mesmo hidráulica e só paga pela energia eólica ou solar, os demais estão pagando a diferença por ele. Aqui, é importante observar que a comida deve ter um cardápio equilibrado, o que é efetuado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), e quando, por algum ato externo, é inserida uma fonte mais cara e desnecessária, a comida fica mais cara.

Em suma, as intervenções sem a devida avaliação técnica suportada pelos organismos oficiais do setor, como Aneel, ONS e EPE, se traduzem em desequilíbrios que estão conduzindo ao caos preconizado por Edvaldo e Kelman, a quem me somo.

Diagnósticos existem, assim como propostas de soluções, que tramitam inclusive no Congresso Nacional, mas que, sem dúvida, não agradam a todos, principalmente àqueles que estão ganhando mais em razão da transferência de responsabilidades e custos aos demais. Mas são necessários um basta e um compromisso de todos para alterar esse panorama, recuperar a segurança e o equilíbrio do setor elétrico e, sem dúvida, para um futuro correto para o Brasil.

Marcos Madureira, presidente da Abradee