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A Geni do setor elétrico, escreve Wagner Ferreira, diretor da Abradee

Pandemia exigiu ações emergenciais

Distribuidoras ficaram com o ônus

Wagner Ferreira

Domingo à tarde, logo após o almoço, ouvia aquelas rádios disponíveis nos canais de TV. Estava junto com minha família, curtindo aquelas sempre presentes e atuais letras de décadas passadas. De repente, começa Geni e o Zepelim, do Chico Buarque, canção bem complexa especialmente com duas bebês por perto. Mas a música é boa, e então, continuamos ouvindo, acreditando que as pequenas, que estavam brincando em outro cômodo, não teriam condições de compreender determinadas mensagens e palavras da música. Assim seguimos e deu certo!

A letra é sagaz, dura, escrachada, mas externa verdade desnuda sobre muitas coisas da nossa sociedade. E aí veio a conexão natural com o que estamos vivenciando no setor elétrico brasileiro.

Aos que curtem uma boa e velha MPB e acompanham as discussões relacionadas ao segmento de energia, já é possível, de logo, identificar um pouco do que esse escritor pretende abordar.

A letra revela, com ousadia, a sociedade tal como é: usurpadora, preconceituosa, julgadora, interesseira e daí vai. A letra é assim, dura, mas de verdade inconteste.

Com esse prenúncio, diria diferente e descontraído, vamos então falar da Geni do setor elétrico brasileiro!

No início da pandemia de covid-19, o setor elétrico preparava-se para os efeitos desse evento tão extraordinário, imprevisível e inestimável. O objetivo era dar uma resposta para a sociedade de que havia segurança e robustez, e que os investimentos feitos em infraestrutura são firmes como uma rocha.

Junta-se, então, os agentes setoriais, chama-se para a mesa geradores, transmissores e, principalmente, as distribuidoras. Todos participando e propondo soluções para evitar a “explosão” do setor elétrico brasileiro. Quase que imediatamente, foram alteradas várias questões na operação das distribuidoras para dar uma sensação de mais proteção ao usuário do serviço público (Resolução Aneel nº 878) e que na prática interferiram na capacidade de gestão da adimplência dela, a bendita distribuidora.

Essas medidas flexíveis na operação da distribuidora, de quebra, ainda serviram para que o Poder Concedente e o regulador pudessem gerenciar com muito mais tranquilidade as pressões de Estados e municípios que clamavam por isenções, proteções e outros benefícios ao consumidor/eleitor. Bendita distribuidora.

Como o setor elétrico, ao fim e a cabo, serve a um bem público essencial assim guardado constitucionalmente, a resposta estrutural teria que ser rápida. Muitas discussões, envolvimento de N agentes, ministérios, agência reguladora, bancos, auditores, a lista é longa, claro, o sistema é realmente complexo. A decisão veio com boa agilidade, especialmente diante da extraordinária pandemia enfrentada. Primeira decisão. Garantiu-se os contratos em geração e transmissão, os 2 primeiros elos de uma cadeia de 3, no modelo vigente. Essa decisão objetivou dar um sinal de segurança aos investimentos realizados no setor elétrico brasileiro e aos negócios realizados no país, todos ressonaram esse mantra. E como vai se operacionalizar essa garantia aos setores de geração e transmissão, indaga a sociedade? A resposta é conhecida, um empréstimo com garantia dos ativos da distribuidora tal como ocorrera na Conta ACR de 2014, onde a distribuidora cobrara dos consumidores para poder pagar os geradores e transmissores. Bendita distribuidora.

Legal, assim, geração e transmissão utilizarão a plataforma da distribuidora, afinal é ela quem arrecada todos os custos setoriais junto ao usuário do serviço de energia. Bendita distribuidora.

A distribuidora, depois de assumir mais esse custo setorial, pergunta: mas e nós que operamos todo esse sistema para entregar o serviço ao consumidor de energia elétrica? E a receita que vai reduzir em função da redução do mercado? A sobrecontratação da energia adquirida anteriormente nos leilões públicos? E a receita irrecuperável, oriunda do aumento da inadimplência? Nós temos muitas soluções para oferecer, alertaram as distribuidoras e especialistas envolvidos.

Na condição de operadora de um serviço público de distribuição, em nome do Estado, não havia, naquela altura, dúvidas sobre a importância das distribuidoras, pois são essas quem operam todo o serviço, apresentam e cobram a conta do outro lado, arrecadam e viabilizam todos os compromissos e custos setoriais. Afinal, a bendita distribuidora presta um serviço público essencial a toda sociedade em nome do próprio Estado.

E para tanto, para prestar esse serviço monopolista em nome do Estado (com E maiúsculo), ela tem uma série de condições, afinal a distribuidora apenas opera um serviço em nome de outro. Óbvio, ela não é a “Dona” dos serviços ou dos ativos. Ela é, por assim dizer, uma fiel guardiã de bens valiosos da União durante a vigência de um longo contrato administrativo. Bendita distribuidora.

A distribuidora é uma delegatária do Estado. Na condição de delegatária, precisa aceitar os limites impostos pelo Estado assinando um contrato de concessão, baseado principalmente na Lei 8.987. Lembrando os velhos conceitos do Direito Administrativo. Isso ocorre porque o operador delegatário tem muito mais condições de ser eficiente na prestação do serviço, a partir de uma regulação bem aplicada, servindo melhor a sociedade. Bendita operadora!

Trocando em miúdos, ou em notas musicais, a distribuidora, em nome e a serviço do Estado, opera uma concessão de serviço público de distribuição ao usuário final (popularmente chamado de consumidor), com bases legais rígidas, tarifas estabelecidas, com riscos e ganhos definidos e limitados, devidamente acompanhado, regulado e fiscalizado, tudo isso em nome de um serviço de qualidade e com tarifas módicas. É um casamento de longo prazo, onde ao final, a delegatária devolve ao Estado todo aquele ativo devidamente cuidado e tratado ao longo dos últimos 30 anos. Bendita distribuidora.

Essa mesma distribuidora é responsável por melhorar a eficiência do serviço ao longo dos últimos anos e, se dependesse exclusivamente dela (e não de encargos e tributos, principalmente), a tarifa de energia seria menor em mais de 40% considerando os últimos 10 anos! Bendita distribuidora. Mas os outros itens da conta de energia subiram mais que esses 40% e essa eficiência fica escondida, sem que ninguém perceba (ou queira perceber) o real motivo do aumento das faturas de energia.

Em razão dessa delegação, o Direito Administrativo ensina, e não é de hoje, que o delegatário não pode responder pelos riscos extraordinários de um contrato de concessão de infraestrutura, como é o caso dos contratos das concessionárias dos serviços públicos de distribuição de energia elétrica. É de se compreender, sem necessidade de grandes leituras, que jamais poderia esse delegatário responder por algo que não assumiu (e nem poderia) quando topou prestar o serviço concedido. O risco extraordinário pertence ao concedente do serviço e não ao operador. Parece simples, mas não é.

Com essas linhas simplórias, tudo parece seguir um rumo regular no tratamento dos efeitos da pandemia nos contratos de concessão das distribuidoras dentro do SEB, afinal dera-se 100% de cobertura aos contratos com os geradores e transmissores. Supreendentemente, desprezando aquela coerente premissa de que o setor elétrico tem que se mostrar uma rocha diante da pandemia para assegurar investimento e a narrativa de garantir os contratos de geração e transmissão, e na linha oposta dos bons e presentes ensinamentos legais e constitucionais, surge um  teste de consistência, de admissibilidade ou de conveniência para mensurar os efeitos extraordinários da pandemia nos contratos das distribuidoras, onde, na prática, limita o alcance do direito para permitir que somente uma fração dos riscos extraordinários sejam cobertos nos contratos. Maldita distribuidora.

As soluções anteriores já tinham desarmado a pressão pública e social de modo que tomadores de decisões já podiam assistir aquela nova fase do problema com um novo comportamento. O imbróglio está concentrado nas distribuidoras.  Mas agora aquela mesma distribuidora que foi fundamental para evitar a explosão no setor já não tem tanta serventia assim. Afinal, a essa altura, com as decisões tomadas, o risco ficou nas mãos das distribuidoras. Daqui pra lá, é um problema exclusivo dela, pois já está arrecadando para geradores, transmissores, encargos e tributos, já parou de suspender o serviço por inadimplência, já flexibilizou negociações de recebíveis da indústria. Maldita distribuidora.

A distribuidora, como fala-se no popular, ficou com o pires na mão. Mas porque e qual a base para que fizessem isso? Todo plexo normativo, contratual, legal, constitucional e moral determina que os riscos extraordinários sejam assumidos pelo seu Dono e não pelo seu operador? Maldita distribuidora.

A resposta à essa questão o autor do artigo não tem, mas alguém há de ter. Talvez um Zepelim canarinho, verde e amarelo, surja e dê o tratamento respeitoso e legalmente adequado às distribuidoras, pois só assim os demais players começarão a enxergar, sem miopia voluntária, o que foi assinado com as distribuidoras de energia e o papel fundamental que elas exercem à sociedade em nome do Estado.

Que possamos ter responsabilidade, justeza, metodologia, atenção à lei nos próximos passos, pois, caso contrário, todos sentirão falta da Geni, já que é ela quem opera com precisão garantindo a entrega de energia a todos, arrecadando com maestria os compromissos setoriais e tributos, garantindo a segurança de investimentos e do serviço em nome do Estado e de todo setor elétrico e claro servindo de corpo para os mais variados benefícios dos agentes da sociedade. Bendita distribuidora.


*Wagner Ferreira é Diretor Jurídico e Institucional da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee)

*Link da matéria: https://www.poder360.com.br/opiniao/economia/a-geni-do-setor-eletrico-escreve-wagner-ferreira-diretor-da-abradee/