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Pandemia e confusão: diferença entre demanda e energia nunca foi tão importante

Fonte.: Estadão

No contexto da pandemia do Covid-19 e a consequente revisão de contratos por mecanismos de força maior e/ou onerosidade excessiva, o setor elétrico vem observando uma perigosa confusão de conceitos desembocar no Poder Judiciário. Compra/venda de energia tem sido tratada indistintamente do uso do sistema elétrico. Neste artigo, jogaremos luz na diferença entre demanda de potência e consumo de energia, demonstrando que, quando as premissas econômicas, técnicas e regulatórias são diferentes, também devem ser suas consequências jurídicas.

Ainda nos primeiros dias de abril, diversos veículos de comunicação noticiaram a concessão de liminares a consumidores do mercado livre de energia (ACL) para que pagassem às comercializadoras e geradoras pelo montante de energia efetivamente utilizado, independentemente do quanto houvessem contratado. Até 14 de maio, já eram mais de 30 ações somente no estado de São Paulo movidas por consumidores livres, com liminares sendo obtidas em cerca de 80% dos casos.

Na esteira dessas decisões, consumidores do grupo A (no mercado regulado) ajuizaram ações perante as distribuidoras de energia solicitando alteração da regra de faturamento de demanda contratada para demanda medida. As liminares concedidas nas ações que discutem a compra e venda de energia no mercado livre foram apresentadas ao Judiciário como “precedentes”, buscando idêntica aplicação nas ações contra as distribuidoras no mercado regulado, como se fossem relações jurídicas idênticas.

A ação movida por uma rede de academias de ginástica em face da ANEEL e dezesseis distribuidoras é ilustrativa desta confusão. Tratou-se a relação no ambiente regulado (ACR) com a distribuidora como “a contratação de forma antecipada da quantidade total – e, portanto, mínima – de energia elétrica” para questionar a cobrança da demanda de potência contratada. A confusão entre demanda e energia se manteve na concessão da liminar, quando o Juízo expôs que “(…) não se está legitimando o não pagamento das faturas, mas garantindo que, na atual quadra, efetue-se o pagamento da energia elétrica efetivamente utilizada”.

Assim, faz-se necessário rememorar brevemente, para os fins deste artigo, as diferenças entre contratação de demanda e de energia. Os consumidores de energia em média e alta tensão, classificados como Grupo “A”, possuem faturamento na forma binômia, realizando duas contratações distintas: uma de demanda de potência (ou uso do sistema de distribuição) e outra de consumo de energia propriamente dito.

Deixando de lado o rigor técnico/regulatório, é como se no primeiro contrato o cliente contratasse o uso de uma mangueira (demanda), e no outro, a água que passaria ali (energia). A medida da dessa mangueira será a soma das cargas instaladas em cada unidade consumidora, formando então a demanda contratada. Esta contratação serve para que a concessionária e agentes de transmissão possam planejar, construir e reforçar suas redes, instalar equipamentos de transformação etc.

Pela contratação de demanda se conhece as necessidades dos grandes consumidores, de modo que a distribuidora e os agentes setoriais se programem para atingir um nível ótimo de utilização do sistema. A contratação de demanda remunera ainda outros componentes fixos como gastos com pessoal, operação e manutenção da rede existente. Assim, tais custos pouco dependem da quantidade de “água” consumida no mês a mês.

Portanto, o pagamento mínimo pela demanda contratada garante a manutenção da cadeia do fornecimento de energia elétrica, enquanto serviço público, se desdobrando em uma série de componentes financeiros/contábeis que equacionam todo o setor elétrico.

A contratação de energia é completamente distinta. A energia gerada e consumida, é a “água” do nosso exemplo. Os consumidores do Grupo A têm a possibilidade de adquiri-la de forma cativa (ou regulada) com a distribuidora ou no ambiente livre com comercializadoras e geradoras.

Os contratos firmados no ambiente de contratação livre (ACL) estabelecem a aquisição de montantes futuros de energia, negociados em mercado supervisionado pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). Como contratos futuros, a vantagem ou desvantagem do consumidor livre será baseada na diferença entre os montantes contratados a preço certo e o incerto preço regulado no mercado cativo.

Tais contratos, então, contém as chamadas obrigações take or pay, que impõe que o consumidor/comprador pague pela energia que contratou, independentemente do seu consumo. A natureza financeira deste tipo de contratação o permite revender/liquidar no mercado o quanto de energia não utilizar efetivamente.

Já na contratação cativa (ou ACR) com a distribuidora de energia, via CCER, o consumidor pagará sempre pelo quanto consumiu de energia. Caso não consuma nada, seu único pagamento será somente a demanda contratada, por força do CUSD (Contrato de Uso do Sistema de Distribuição), também firmado pelos consumidores livres. Nos consumidores do grupo B, em geral, residenciais, esse é o chamado “custo de disponibilidade” discriminado na fatura de energia, por exemplo, de um imóvel fechado, mas ainda ligado à rede de distribuição.

A partir da diferença de natureza jurídica entre tais conceitos, percebemos que a possível aplicação e consequências da força maior sobre os contratos de compra e venda de energia no ACL são muitíssimo diversas daquelas apontadas em relação à contratação de demanda com as distribuidoras.

Na relação no ACL, a ocorrência ou não de força maior, ou mesmo onerosidade excessiva, orbitará o possível desequilíbrio financeiro entre as partes, já que as comercializadoras e geradoras “jogam” com as diferenças de projeções de mercado de preço de energia entre o preço que estes compraram (ou incorreram para gerar) e aquele que venderam a energia.

A distribuidora sequer lucra efetivamente com a venda de energia, propriamente dita. Por tal razão, o argumento de enriquecimento sem causa, usado nas ações movidas contra as comercializadoras, não faz sentido na discussão em face da distribuidora. Pelo contrário, o core business da distribuidoraé a ampliação/manutenção dos ativos que compõem o sistema de distribuição de energia.

Ainda, os custos operacionais não guardam relação direta com o consumo de energia, vez que a distribuidora sempre terá de manter o sistema elétrico em funcionamento, com infraestrutura de operação e manutenção, com ou sem pandemia. É por isso também, que a forma de cobrança da demanda contida nos CUSDs é imposta pelo Decreto 62.724/68.

Espera-se que esta comum confusão em primeira análise dos pedidos liminares, seja esclarecida no Poder Judiciário no decorrer dos processos.

Observaremos agora as razões e peculiaridades sistêmicas da distribuição de energia elétrica e a razão do tratamento diferenciado das causas em que se discute meramente a compra e venda de energia. O serviço público essencial de fornecimento e distribuição de energia elétrica possui estrutura complexa de custos, orientada por políticas públicas, por exemplo, de expansão nacional das redes de energia, subsídios à população de baixa renda etc. Ainda, custeia ações de segurança energética, funcionamento da ANEEL de Operador Nacional do Sistema elétrico (ONS), entre outros.

Assim, embora a relação jurídica firmada via CUSD entre distribuidoras e consumidores gere, imediatamente, efeitos entre as partes, tal relação é construída em um fino balanço de equilíbrio setorial, altamente regulado por legislação específica.

Não se está, portanto, diante de simples relação bilateral tal qual havidas, por exemplo, no campo imobiliário, entre locador e locatário, em que a aplicação das noções tradicionais de força maior, onerosidade excessiva ou, mais recentemente, socialização dos prejuízos, orientam diretamente a tomada de decisão pelo Judiciário. A locação imobiliária somente guardaria, portanto, (alguma) relação com os contratos de compra e venda de energia no ACL, já que ambas se tratam de vínculos eminentemente privados, cujos conflitos são resolvidos de forma bilateral.

Já na contratação de demanda, a ideia de “aliviar” para um lado (consumidor), não necessariamente significará “pesar” (somente) para o outro (distribuidora). Há notadamente mais efeitos ao longo da cadeia do setor elétrico, já que a “mangueira” do sistema elétrico não alimenta apenas um cliente. Ou seja, há componentes de interesse coletivo em jogo.

É por isso, que há alguns anos, têm-se firmado orientação nas cortes superiores de que dadas as especificidades técnicas do setor elétrico e as prerrogativas da Agência Reguladora, o Poder Judiciário deve evitar interferir em tais relações, sob o risco de grave lesão à ordem pública. Este entendimento já recebeu acolhida nos Tribunais durante a situação de pandemia do COVID-19.

Nesta linha, a Advocacia Geral da União se manifestou em uma das ações em que foi negada a concessão de liminar, apontando os riscos e potencial impacto em todo o setor de energia elétrica, inclusive para a população, em caso de decisões na contramão dos atos da administração pública.

A palavra-chave é sustentabilidade. Decisões judiciais que suspendem efeitos contratuais na prestação de um serviço púbico essencial abrem perigosos precedentes, que podem levar a inadimplemento generalizado afetando toda a cadeia do setor, não só colocando em risco do equilíbrio econômico-financeiro das distribuidoras, mas também a própria continuidade da prestação do serviço, mesmo para as atividades essenciais e a população mais vulnerável.

O chamado “efeito cascata” é pernicioso. Os custos que um consumidor deixa de arcar, são, sem o devido equacionamento, imediatamente transferidos para os outros, vítimas da mesma pandemia. Isto, por sua vez, pode gerar judicialização em massa, já que todos os consumidores irão querer ver-se livres de tal pagamento, em bola de neve. Somente para este pleito de flexibilização de contratos dos grandes consumidores, a ANEEL previu R$ 1 bilhão de impacto em apenas três meses, a ser transferido a todos os consumidores.

Finalmente, há de ser observada a aplicação do princípio da isonomia, ínsito às relações de prestação de serviços públicos e cuja obrigação é determinada às distribuidoras em relação aos seus consumidores. Assim, o equânime e justo tratamento não permite a convivência de situações diferenciadas entre consumidores em realidades idênticas.

O setor elétrico não está passando ao largo da pandemia. Além de uma miríade de situações a resolver entre os agentes de geração, transmissão e distribuição de energia, o Governo Federal, o Ministério de Minas e Energia e a ANEEL já começaram a endereçar questões atinentes aos impactos da Covid-19 sob os consumidores de energia elétrica.

Na esteira da Medida Provisória 950/20, o Governo Federal publicou o decreto 10.350/20, criando a chamada “Conta Covid” para cobertura dos déficits experimentados pelo setor elétrico no contexto da pandemia. O decreto tratou do pleito dos consumidores do grupo A para que lhes fosse permitida a postergação do pagamento da diferença entre a demanda medida e a contratada. Assim, a Conta Covid repassará recursos às distribuidoras para cobertura de tais diferimentos, em forma ainda a ser regulamentada pela ANEEL.

Na reunião de Diretoria da ANEEL de 19 de maio, em processo administrativo tratando do tema, decidiu-se pela manutenção a priori das obrigações firmadas, com a recomendação de negociação entre consumidores e distribuidoras, considerando os recursos aportados pela Conta Covid e a regulamentação esperada para os próximos dias. A definição de pontos como a alocação de risco em caso de inadimplência (sistêmico ou da distribuidora) será vital para dar tração ao diferimento possibilitado pelo Decreto. A assunção do risco pela distribuidora poderia representar um passo atrás, tendo em vista o encarecimento da solução pela exigência de contragarantias pelos consumidores.

Já a alocação do risco ao sistema estaria em linha com os incentivos regulatórios já em vigor, como por exemplo, a maior flexibilidade para negociação em substituição à suspensão do fornecimento, possibilitado durante a calamidade pela Resolução Normativa ANEEL nº 878/20 e a possibilidade de parcelamento ou reparcelamento de débitos, anteriormente prevista na regulamentação. As distribuidoras também estão vendo seu fluxo de caixa cair pela redução do consumo e inadimplência.

De qualquer sorte, a comunidade jurídica vem colhendo, nos últimos anos, lições valiosas a partir das complexidades sistêmicas do setor elétrico (quem não se recorda do até hoje judicializado GSF?). Esses aprendizados vêm tomando forma na jurisprudência e maturado, por exemplo, na publicação de Enunciados, como os nº 19 e 20 do FONACRE, reconhecendo os efeitos sistêmicos e econômicos de decisões judiciais no setor elétrico. As complexidades do setor se mantêm mesmo na realidade de pandemia. De fato, a decisão liminar referida no início deste artigo foi cassada sob o reconhecimento, prima facie, da impossibilidade de dimensionar seus efeitos no setor.

Assim, permite-se a sustentação desse segmento robusto, complexo e altamente interligado. As soluções que vem sendo propostas indicam a composição de todos os interesses envolvidos, buscando formas de resguardar os consumidores afetados pela pandemia e igualmente o setor elétrico.

É com essa visão sistêmica que aguardamos serenidade e prudência por parte das decisões judiciais, privilegiando as tratativas negociais à luz da regulamentação setorial editada para enfrentar o momento de pandemia, para que não tenhamos mais um nó judicial. Desta forma, o setor elétrico brasileiro continuará a existir e ajudar no crescimento do país após essa turbulência momentânea.

Wagner Ferreira, diretor Jurídico e Institucional da ABRADEE (Associação Brasileira de Distribuidoras de Energia elétrica) e Lucas Pestana Macedo, bacharel em Direito e mestrando em Transnational Arbitration & Dispute Settlement pela SciencesPo Paris.

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